A inevitabilidade estrutural do 8 de janeiro e o Carrasco

“O único que realmente conhece o Reichstag sou eu, pois o incendiei!” (Hermann Göring, citado por Franz Halder, chefe do Estado-Maior alemão, em depoimento ao Tribunal de Nuremberg)

Do ponto de vista do regime lulopetista, o 8 de janeiro tinha de acontecer. Tanto quanto, do ponto de vista dos nacional-socialistas recém-chegados ao poder na Alemanha dos anos 1930, tinha de acontecer o incêndio do Reichstag. Em ambos os casos, embora possa haver suspeitas de infiltração e inside job, dificilmente se chegará a uma conclusão definitiva sobre as responsabilidades. O que não faz grande diferença. Parodiando Kaváfis sobre os bárbaros: “Sem os golpistas, o que será de nós? Ah! Eles eram uma solução”.

O caso alemão até hoje é debatido, sem que se apresente uma prova cabal da participação nazista no incêndio, o qual, segundo a versão oficial, foi cometido pelo militante comunista holandês Marinus van der Lubbe. De todo modo, quer tenham participado ativamente do ocorrido, quer tenham apenas se beneficiado da providencial estupidez de um incendiário, o fato é que o evento se inscrevia nas expectativas nazistas de alterar a ordem político-jurídica da Alemanha e passar a governar sob estado permanente de emergência. Afinal, como já escrevera Carl Schmitt, o proeminente filósofo nazista do direito, a soberania política consiste no “poder legal de comandar em uma situação de emergência”.
 
Do ponto de vista do regime lulopetista, o 8 de janeiro tinha de acontecer. Tanto quanto, do ponto de vista dos nazistas recém-chegados ao poder na Alemanha dos anos 1930, tinha de acontecer o incêndio do Reichstag
 

Segundo registra William L. Shirer no clássico Ascensão e Queda do Terceiro Reich, em 31 de janeiro de 1933, um dia após Hitler ter sido nomeado chanceler, Goebbels escrevia em seu diário: “Numa conferência com o Führer estabelecemos a linha para a luta contra o terror vermelho. Por ora nos absteremos de contramedidas diretas. A tentativa bolchevista da revolução devia, primeiro, explodir em chamas. No momento adequado atacaremos”.

Como se sabe, no dia posterior ao incêndio, 28 de fevereiro, Hitler persuadiu o presidente Hindenburg a assinar um decreto “pela proteção do povo e do Estado”, suspendendo as sete seções da Constituição que garantiam as liberdades individuais e civis. Apresentado como “medida defensiva contra os atos de violência dos comunistas que punham em perigo o Estado”, o decreto estabelecia que:

“Restrições à liberdade pessoal, ao direito de livre manifestação de opinião, inclusive à liberdade de imprensa; aos direitos de reunião e associação; as violações das comunicações privadas telefônicas, telegráficas e postais; e autorizações para buscas domiciliares, ordens para confiscos, bem como restrições à propriedade, são também permissíveis além dos limites legais prescritos em outras circunstâncias.”

Ou seja, o regime pretendia se estabelecer sob uma lógica defensiva e, portanto, de exceção. Nessas condições, as normas vigentes deviam ceder às prioridades e prerrogativas da razão de Estado. E o resto, como se diz, é história. No livro Backing Hitler: Consent and Coercion in Nazi Germany, Robert Gellately comenta sobre as “inovações” jurídicas que os nazistas julgaram por bem implementar para preservar o Estado alemão após o incêndio:

“O governo insistia em dizer que reagia contra uma ameaça revolucionária, a qual requeria medidas emergenciais de curto prazo. Assegurava constantemente o público de que, uma vez passada a crise, o império da lei e as liberdades seriam restituídas na Alemanha. Restava óbvio, porém, mesmo ao tempo em que essas vagas promessas eram feitas, que as inovações introduzidas seriam características permanentes da ditadura de Hitler.”

No Brasil de 2023, o regime lulopetista também começou sob a lógica defensiva – a defesa da democracia contra os “ataques” do assim chamado bolsonarismo. Recorrendo ao conceito de “democracia defensiva” (de inspiração alemã, aliás), já no primeiro dia, mediante o Decreto Federal 11.328, de 1.º de janeiro de 2023, o regime criou a Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia, abrigada sob as asas da Advocacia-Geral da União, dando-lhe, entre outras atribuições, a de defender judicialmente a integridade da ação pública e a preservação da legitimação dos três poderes e de seus membros para o exercício de suas funções constitucionais. Registre-se: tudo isso antes dos eventos de 8 de janeiro.
 

Em 2022, integrantes e aliados do futuro regime já esperavam um pretexto para a instauração de um estado de emergência no qual direitos fundamentais fossem suspensos em favor da “defesa da democracia”

Mas, ainda em 2022, nos últimos espasmos do governo Bolsonaro – já ali castrado e corroído desde o interior das instituições da República –, já havia como que uma sede, da parte de integrantes e aliados do futuro regime, por um pretexto para a instauração de um estado de emergência, ou estado “excepcionalíssimo”, no qual normas constitucionais regulares e direitos fundamentais fossem suspensos (temporariamente, é claro) em favor da defesa da democracia e das instituições. Em 14 de dezembro de 2022, por exemplo, Alexandre de Moraes pronunciaria a famosa frase: “Ainda tem muita gente para prender e muita multa para aplicar.” Como noticiou à época a Gazeta do Povo:

“A fala de Moraes foi feita logo após uma explanação do ministro Dias Toffoli, do STF, que citou para a plateia as centenas de acusações impostas pela justiça americana pela invasão do Capitólio, nos Estados Unidos, ocorrida em janeiro de 2021, por apoiadores do então presidente Donald Trump, derrotado nas últimas eleições presidenciais. Segundo Toffoli, 964 pessoas foram detidas desde o episódio e 465 fizeram acordos se declarando culpadas. Em seguida, ao discursar, Moraes afirmou ter ficado feliz com a informação: ‘Antes de dizer o que eu iria falar, fiquei feliz com a fala do ministro Toffoli porque, comparando os números (com o Brasil), ainda tem muita gente para prender e muita multa para aplicar’, disse Moraes.”

Naquele período, ministros do STF e do TSE fizeram uma série de eventos sobre o conceito de “democracia defensiva”, eventos que contavam com a participação frequente de magistrados e embaixadores alemães, pois é do universo jurídico da Alemanha do segundo pós-guerra que os brasileiros importaram a noção de “democracia defensiva”.

A questão bolsonarista e a solução final

O germe da “democracia defensiva” acha-se no conceito correlato de “democracia militante” (streitbare Demokratie), cunhado pelo filósofo e exilado político alemão Karl Loewenstein. Em artigo publicado em 1937 na The American Political Science Review com o título “Democracia Militante e Direitos Fundamentais”, Loewenstein apontava as fragilidades institucionais da República de Weimar (e das democracias europeias em geral), que haviam permitido a ascensão de Hitler ao poder. Sua ideia, obviamente bem-intencionada, era fundar uma democracia pronta para a batalha contra os seus mais insidiosos inimigos, uma democracia dotada de mecanismos constitucionais robustos para resistir aos autocratas que, valendo-se dos mecanismos institucionais democráticos e do próprio voto popular, adquirissem meios de ação para solapar o mesmo sistema que lhes permitira ascender politicamente. A lógica do autor seria posteriormente consagrada no famoso “paradoxo da tolerância” de Karl Popper, segundo o qual não se pode ser tolerante com os intolerantes, e que foi citado ipsis litteris por Gilmar Mendes –muito familiarizado com o contexto jurídico germânico – no evento do TSE e da Embaixada da Alemanha.

O problema é que, também na Alemanha, e antes mesmo de Loewenstein, um outro autor havia concebido uma ideia análoga à de “democracia militante” ou “democracia defensiva”, conquanto não tivesse usado esses termos. E esse autor é ninguém menos que o já citado Carl Schmitt. Ainda que, graças à sua infame decisão de se juntar ao partido nazista em 1933, Schmitt possa parecer um expoente improvável da teoria da democracia militante, seus escritos mais importantes do período de Weimar constituem uma tentativa de mobilizar os recursos do Estado constitucional para defendê-lo de seus inimigos, internos e externos.

Com efeito, em 1932, antes de aderir ao nazismo, Schmitt argumentara explicitamente pela proibição tanto do partido de Hitler quanto do Partido Comunista. E o fez com base numa teoria constitucional inovadora e extremamente influente, cujo fundamento à ideia de democracia militante ou defensiva era mais sólido que o de Loewenstein.
 

Se a tese de Schmitt estiver correta, há um elemento irredutível de arbitrariedade em toda decisão sobre o que constitui ou não um “inimigo” da democracia

Como mostram os cientistas políticos Carlo Invernizzi Accetti e Ian Zuckerman em sua crítica à ideia de “democracia militante”, a noção-chave da tese de Schmitt é a de um “núcleo constitucional”, por ele definido como o “conteúdo político” da decisão original que “determina a totalidade da unidade política em relação à sua forma peculiar de existência através de uma única instância de decisão”. Esse núcleo se distingue das “leis constitucionais” específicas, cuja tarefa é determinar os “procedimentos formais” através dos quais a decisão política básica que institui a coletividade deve ser expressa.

Com base nessa distinção entre um núcleo constitucional e meras leis constitucionais, Schmitt afirmava que a República de Weimar estava experimentando um conflito entre a “substância política” e a “forma positiva” de sua constituição, uma vez que a força eleitoral dos partidos nazista e comunista ameaçava minar a “república burguesa” por meios formalmente legais “parlamentares”. Por essa razão, o autor recomendava explicitamente que o presidente da república utilizasse o artigo 48 da Constituição para invocar poderes de emergência e proibir tanto o partido nazista quanto o comunista, ainda que, estritamente falando, isso violasse o princípio isonômico incorporado na expressão positiva da Constituição de Weimar.

Eis a versão schmittiana da ideia de democracia militante ou defensiva. Seu argumento principal era o de que os poderes de emergência podiam ser invocados para justificar a restrição das liberdades democráticas, mesmo em violação da “lei constitucional” ordinária, desde que isso fosse destinado a defender o “núcleo” político da Constituição em si. Em outras palavras, Schmitt afirmava que a decisão sobre o que constitui uma ameaça à sobrevivência da ordem democrática é necessariamente uma decisão excepcional – ou, em última análise, política.

Se a tese de Schmitt estiver correta, há um elemento irredutível de arbitrariedade em toda decisão sobre o que constitui ou não um “inimigo” da democracia. Isso porque a decisão sobre quem excluir da possibilidade de participar do jogo democrático é, no fim das contas, uma decisão sobre as fronteiras da própria comunidade política, a qual não pode ser tomada de forma coerente por procedimentos democráticos e, portanto, não pode ser subsumida sob qualquer norma prévia. Por mais travestida de norma constitucional e preocupação democrática que ela apareça, a lógica “defensiva” é sempre uma questão de arbitrariedade política, cujo objetivo final, longe de proteger algum bem político consagrado, consensual e universal (incluindo a própria democracia), é o de redefinir a comunidade política e dela expurgar os elementos tóxicos – quer sejam os judeus, os kulaks, os burgueses ou… os bolsonaristas.

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