CONTO: “O ESPELHO E A LUA”

Uma história de reflexão sobre a vida

Havia um quarto dentro de mim, escuro como a noite que precede o primeiro sopro da criação. Nele, jazia eu, desconhecido de mim mesmo, até que um dia – não sei se por destino ou cansaço – ergui-me do leito de sombras e caminhei. Meus dedos tropeçaram nas paredes invisíveis, buscando uma porta que, supunha, levaria a um lugar sem nome. Quando a encontrei, hesitei: abri-la seria renascer ou morrer outra vez?

A luz que irrompeu não era sol, nem lâmpada. Era algo mais antigo: o brilho que nasce quando a alma se olha sem véus. Ali, naquele limiar, vi um homem encolhido no chão, frágil como um pássaro com as asas quebradas. Seus olhos eram lagos parados, onde nem o vento ousava criar ondulações. Seus braços cruzados guardavam histórias não contadas, e seu sorriso – ah, seu sorriso! – era uma flor murcha presa entre as páginas de um livro esquecido. Decidi nomeá-lo de “Outro”. Nos primeiros dias, o Outro e eu éramos estranhos num mesmo corpo. Ele balbuciava palavras truncadas, misturava medos com silêncios, e eu, que jurara resgatá-lo, descobri-me tão perdido quanto ele. Tentávamos conversar, mas nossas vozes ecoavam em salas vazias. Até que uma noite, enquanto a lua se erguia no céu, como um disco de âmbar, abri a janela do quarto que habitávamos. O luar entrou, líquido e prateado, e banhou-nos a ambos. O Outro se aproximou, devagar, como quem teme assustar um sonho. Seus olhos, antes opacos, refletiram a luz celeste, e pela primeira vez ele me encarou. Não havia mais medo ali – apenas um assombro quieto, como de criança diante do mar. Sentou-se ao meu lado, apoiou a cabeça em meu ombro, e seus dedos encontraram os meus. Não falávamos. A lua falava por nós.

Naquele instante, o mundo parou. As cicatrizes que carregávamos viraram cinzas, e o tempo despiu-se de sua tirania. Eu abracei-o, não como quem consola, mas como quem reconhece: ele era eu, e eu era ele. Dois rios que, enfim, descobrem que correm para o mesmo oceano. Os dias seguintes foram de reconstrução. O Outro começou a desdobrar suas asas – ainda trêmulas, mas ávidas por voar. Contou-me, em fragmentos, sobre as guerras que travara em segredo: batalhas contra fantasmas que lhe roubavam a voz, invernos intermináveis onde a esperança virara pó. Eu ouvia, e em cada palavra ouvia ecos das minhas próprias derrotas. – Estou cansado – ele sussurrava, fitando o chão. – Cansado de quê? – perguntei. – De carregar o peso de existir. Então, propus um pacto: deixaríamos para trás as culpas que nos envenenavam, as armadilhas do “quem deveria ter sido”. Juntos, plantamos um jardim no deserto de nossa memória. Regávamo-lo com perdão, e, pouco a pouco, brotaram flores onde antes só havia espinhos. O Outro mudou. Seus ombros se endireitaram, seu olhar ganhou o brilho de quem descobre que a vida é mais que sobreviver. Começou a sorrir sem forçar, a caminhar sem arrastar os pés. Um dia, apontou para o horizonte e disse: – Quero ver o que há além das montanhas. Eu sabia o que isso significava. Na manhã seguinte, ele não estava mais no quarto. Procurei-o em cada canto, nas sombras, no reflexo dos espelhos. Até que, ao olhar pela janela, vi sua silhueta caminhando em direção ao nascer do sol. Não chorei. Em meu peito, havia uma quietude estranha – a mesma que se sente ao terminar um poema perfeito. Hoje, quando a noite cai e a lua surge, ainda me sento à janela. Sinto sua ausência, mas ela não é vazia: é plena, como a paz que vem após a tempestade. Ele seguiu adiante, e eu segui dentro de mim. Descobri que resgatar alguém é, no fim, resgatar-se. E assim, na fronteira entre a luz e a escuridão, aprendi que não há renascimento sem despedida. Que a alma, quando pronta, deixa para trás até mesmo seus próprios farrapos. E que o amor mais profundo é aquele que nos une àquela parte de nós mesmos que, um dia, precisou ser perdida para ser encontrada.

Virgílio P. Galvão – Colunista

De Brasília – Distrito Federal

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