EDITORIAL: O HOMEM ARRANJA UM CULPADO – E QUANDO NÃO CONSEGUE, COLOCA A CULPA NO INVISÍVEL

Assumir a própria culpa exige coragem e responsabilidade. Desde os primeiros registros da humanidade, o homem sempre buscou um bode expiatório para suas ações, evitando encarar suas próprias falhas

Vejamos um dos relatos mais antigos da civilização ocidental: Eva come o fruto da árvore do conhecimento, Adão, sabendo das consequências, também o come. Confrontado por Deus, Adão joga a culpa em Eva, e Eva, por sua vez, culpa a serpente – que mais tarde seria associada ao diabo. Desde então, essa lógica se perpetua: os homens cometem erros, mas responsabilizam forças externas por suas escolhas.

Outro exemplo clássico é o de Caim e Abel. Caim matou Abel movido pela inveja, incapaz de lidar com a frustração de não agradar seus pais com suas ofertas. Enquanto Abel trazia ovelhas e bois, Caim ofertava os frutos da terra. Sentindo-se rejeitado, passou meses tramando a morte do próprio irmão, sem pensar nas consequências ou na dor que causaria. Ele foi o único responsável pelo assassinato – não houve influência de um ser mitológico.

Esse padrão se repete ao longo da história. O brutal assassinato da jovem Vitória, de 17 anos, chocou o país pelo requinte de crueldade. Quase uma dezena de homens se reuniu para degolá-la, sem qualquer piedade. Como explicar tamanha maldade? Muitos dirão que foi pela falta de Deus ou pela influência de Satanás, mais uma vez transferindo a responsabilidade para o invisível.

A guerra entre Rússia e Ucrânia já matou mais de um milhão de jovens. De quem é a culpa? Enquanto alguns recorrem a teorias apocalípticas e associam o conflito ao fim dos tempos e à ação da “besta” ou do “diabo”, a verdade é que essas mortes são consequência direta das decisões de líderes humanos. São os próprios homens que fazem guerra, matam e destroem, porém não uma entidade maligna que os manipula.

Criou-se, assim, a ideia de um Deus punitivo, que castiga e condena, e de um ser maligno, Satanás, que influencia e seduz ao erro. Mas, afinal, quem mente, rouba e mata se não os próprios homens? Quando Jesus afirmou que “o pai da mentira é o diabo”, talvez estivesse apenas personificando aquilo que, na verdade, são características humanas. O ódio, a inveja e a corrupção moral são produtos da própria natureza humana, mas, para fugir da responsabilidade, muitos preferem atribuí-los a uma entidade maligna.

Assim, surgem os que exorcizam demônios para justificar seus pecados e os que dizem que o afastamento de Deus é a causa do mal. No fundo, porém, a humanidade é a única arquiteta de sua própria desgraça. Explora, trai, rouba e mata – e depois se justifica alegando ter sido “tentada”, como se não tivesse livre-arbítrio.

A maldade, assim como a bondade, é uma escolha. Para praticar o mal, são necessárias ações e decisões conscientes, muitas vezes elaboradas. O mal só pode existir onde a bondade está ausente, pois ambas são opostas e não caminham juntas.

Para que um ser humano cometa um ato de maldade – seja roubar, mentir ou prejudicar outro – ele precisa decidir fazê-lo, seja por necessidade, seja para obter vantagem às custas dos demais. Já o bem, paradoxalmente, muitas vezes só se manifesta em resposta ao mal. No entanto, para que o mal aconteça, basta a ausência da luz.

Essa luz, que ilumina o caminho da verdade, do compromisso e da responsabilidade, é a essência da bondade. Onde ela está presente, o mal não encontra espaço para crescer.

Se o diabo existe, ele apenas assiste. Os verdadeiros culpados estão diante do espelho. Se praticou ou está pensando em praticar o mal, antes de agir, vá até um espelho e veja quem é o responsável. Se não você, quem mais?

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 Da redação

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