CONTO: A MULHER DA FRALDA

Mais um conto emocionante narrado pelo colunista Virgílio Galvão

Sempre achei curioso quando alguém diz “eu vi a imagem do inferno”. Normalmente, é só um exagero, uma hipérbole para descrever algo desagradável. Mas nunca essa expressão fez tanto sentido quanto na história que estou prestes a contar.

Trabalhava em um hospital oncológico, no setor de radioterapia. O câncer, esse inimigo implacável, não marcava apenas os corpos, mas também transformava as almas dos pacientes. Eu via gente que, antes tão preocupada com vaidades e problemas cotidianos, passava a enxergar a vida de maneira diferente, valorizando o essencial. Cada conversa era uma lição, um novo olhar sobre o mundo. E foi assim que conheci a ‘mulher da fralda’.

Ela tinha por volta de 40 anos e havia passado por uma cirurgia extensa para remover um tumor agressivo, perdendo um dos olhos e parte do rosto. Sem possibilidade de reconstrução, encontrou uma solução prática: usava uma fralda branca, sempre limpa, para cobrir a cavidade exposta e evitar que insetos entrassem. Sua aparência podia chamar atenção, mas o que realmente impressionava era sua energia. Apesar de tudo, ela sorria, como se a vida ainda tivesse muito a oferecer.

Certo dia, ela entrou no setor gargalhando, me procurando.

— Doutor, você não vai acreditar! Uns homens foram lá em casa com más intenções… Mas eles viram a imagem do inferno!

A curiosidade me pegou na hora. Pedi que contasse melhor.

— Eu estava dormindo sozinha, porque minha família tinha saído para a igreja. Já era tarde da noite quando ouvi um barulho na sala. A casa estava escura, mas fui ver o que era.

Ela fez uma pausa, segurando o riso.

— Foi então que vi dois homens carregando a televisão. No susto, achando que fossem meus parentes, acendi a luz. E aí, doutor… foi quando tudo aconteceu!

Agora ela ria tanto que mal conseguia falar.

— No mesmo instante, soltei um grito e a fralda do meu rosto caiu! E como eu tinha acabado de acordar, meu cabelo estava todo embaraçado… e minha cara… bom, minha cara você já conhece!

Ela explodiu numa gargalhada contagiante, e eu comecei a rir junto, sem nem saber o final.

— Doutor, os dois me olharam e congelaram! Não gritaram, não xingaram… só ficaram ali, paralisados! Depois, do nada, largaram a televisão no chão e saíram correndo aos berros, tropeçando em tudo, como se tivessem visto o próprio demônio!

Ela enxugava os olhos de tanto rir, e eu, já sem fôlego, ria junto, imaginando a cena.

A ironia daquela história me acertou em cheio. Durante tanto tempo, ela conviveu com olhares de curiosidade, pena e até medo. Mas, naquela noite, foi como se a vida tivesse lhe dado uma vingança cômica.

E lá estava ela, transformando a tragédia em piada. Não se tratava da doença, nem da deformidade. Era sobre a sua capacidade inabalável de encontrar humor na vida — mesmo quando o mundo insistia em lhe mostrar seu lado mais cruel.

Naquela noite, os ladrões viram a imagem do inferno. Mas e a mulher da fralda? Ela seguiu rindo deles.

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Por Virgilio Galvão

Brasília/DF

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