Revista ‘despublica’ artigo de biólogo que pisou em jararacas para estudar quando elas picam

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A revista científica Scientific Reports, do grupo Nature, retratou no dia 11 deste mês (isto é, “despublicou”) um artigo, que saiu em maio do ano passado, em que cientistas brasileiros descrevem como e com qual frequência serpentes da espécie jararaca (Bothrops jararaca) picam seres humanos.

O estudo foi conduzido por pesquisadores do Instituto Butantan e tem como primeiro autor João Miguel Alves Nunes, então orientando de Otávio Vuolo Marques, pesquisador do Laboratório de Ecologia e Evolução do instituto.

Após uma denúncia anônima, o Comitê de Ética em Publicações (Cope) da editora Springer Nature iniciou uma investigação. A denúncia indicava o uso de uma experimentação animal não condizente com o protocolo aprovado pela Comissão de Ética em Uso Animal (CEUAIB) do instituto. Além disso, a utilização de filhotes também foi apontado como um problema, já que o experimento inicial aprovado incluía somente indivíduos adultos.

“Levamos tais preocupações extremamente a sério, e imediatamente iniciamos uma investigação minuciosa sobre o assunto, seguindo um processo estabelecido e em conformidade com as melhores práticas do Cope”, disse, em nota, Rafal Marszalek, editor-chefe da revista Scientific Reports.

“Uma vez concluída a investigação, chegamos à conclusão de que a ação mais apropriada a ser tomada era a retratação do artigo, pois a aprovação ética para o estudo não cobria vários aspectos da pesquisa descrita no artigo publicado, conforme detalhado na nota de retratação.”

Na nota de retração, é dito que o uso de filhotes e o ato de pisar nas cobras não havia sido aprovado pelo comitê do Butantan.

Qualquer pesquisa, seja ela experimental ou na natureza, que vai usar como objetos de estudo animais vivos precisa de uma autorização do comitê de ética, que responde ao Concea (Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal), órgão federal vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. A Folha de S.Paulo procurou o órgão para pedir informações sobre a licença concedida para o estudo com as jararacas, mas não recebeu resposta até a publicação deste texto.

O método do estudo consistia em pisar levemente nos animais usando botas de proteção para evitar acidentes ofídicos. No protocolo inicial aprovado para a pesquisa, os cientistas disseram que adotariam um gancho metálico herpetológico para estimulação das serpentes, mas decidiram depois mudar para as pisadas. Inicialmente, foi aprovado o uso de 114 jararacas adultas fêmeas e machos, mas de nenhum recém-nascido.

Sandra Coccuzzo, diretora de desenvolvimento científico do Butantan, afirma que a revista entrou em contato com a comissão de ética do instituto solicitando as certificações de experimentação animal. Foi, então, verificado que de fato o que foi solicitado no momento de aprovação do estudo não foi o apontado no artigo pelos autores. “Rapidamente entendemos o que houve e notificamos os pesquisadores, uma vez que a comissão também é formada por outros cientistas do próprio instituto e nós temos muita preocupação com a lisura das instâncias e comitês institucionais a esse respeito.”

Segundo a diretora, Marques ficou “aborrecido de ter acreditado que estava tudo certo, uma vez que ele já tinha o protocolo aprovado”.

Coccuzzo acrescenta que o Butantan tem obrigação, como uma instituição pública, de cumprir todas as normas legais. “Se a gente não fizer essa notificação [da mudança do pedido] e essa notícia reverbera, podemos inclusive ter de responder em um âmbito mais duro, federal, e não tem a menor necessidade disso.”

Nunes, primeiro autor do estudo, diz que o uso do termo “pisada” foi o que gerou confusão e que o mais correto seria dizer “tocar levemente com o pé”.

“Vale ressaltar que nenhum animal teve sequelas, morreu ou tem algum problema de coluna vertebral ou algo do tipo após dois anos”, afirma o pesquisador. “A decisão foi por um excesso burocrático e erro de formulário, não teve mal-estar animal.”

O biólogo, que não é mais ligado ao instituto, diz que só foi saber que o uso de filhotes no estudo não havia sido aprovado quando chegou a notificação da comissão de ética da revista.

De acordo com ele, um problema na solicitação para inclusão dos recém-nascidos resultou no erro, uma vez que o comitê solicitou o afastamento do aluno como executor do projeto depois de ele próprio ter sido picado quatro vezes por serpentes e sofrer uma reação alérgica tanto ao veneno quanto ao soro antiofídico. Na ocasião, a CEUAIB aprovou o seu afastamento do estudo, mas não a inclusão dos filhotes, o que foi entendido como um sinal verde pelos autores também para a expansão no número de animais no estudo.

Nunes afirma que não teve a oportunidade de esclarecer os fatos nas reuniões realizadas pela comissão justamente por ter sido impedido de participar de qualquer projeto relacionado a serpentes ou venenos após os incidentes, o que o fez desistir da carreira no instituto.

Marques, por sua vez, diz que o erro foi seu, como coordenador da pesquisa, e não dos demais autores, uma vez que era o responsável por enviar as solicitações e não comunicou a mudança da metodologia inicial. Segundo ele, não houve nenhuma intenção em fazer algo escondido.

“Infelizmente, a burocracia tomou conta, não só no Butantan, mas na universidade, em todo o lugar. Se eu passo por um sinal vermelho à noite em uma rua erma com meus filhos no carro para salvaguardar a vida deles, posso ser multado. Senti que a comissão de ética estava tentando ajudar, mas não tinha como.”

Ele afirma lamentar a retratação, que não ocorreu pelas causas mais comuns, como manipulação de dados ou plágio. “Nós não cometemos nenhum deslize técnico em relação ao bem-estar dos animais, os dados são bons, o estudo tem uma importância em relação à prevenção de acidentes. Vou manter no meu currículo.”

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