Os moradores de ocupações na cidade de São Paulo

Com a candidatura de Guilherme Boulos (PSOL) para a prefeitura de São Paulo, as ocupações de moradia se tornaram assunto frequente nas redes sociais. Muitas vezes usadas como argumento contra o candidato, que foi liderança do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST). Nestas trocas de informações, se espalham muitos dados incorretos e narrativas deturpadas. Consequência da postura das mídias de grande circulação em defender a todo custo a propriedade privada e insistir pelo viés de criminalização dos movimentos sociais que lutam por habitação digna. O que ocasiona muitas frases de senso-comum, como “Nessas invasões só tem droga e bagunça”, “Você gostaria que sem-tetos invadissem sua casa?”, entre outras. 

Então vamos lá, quem são esses sem-teto? Quem são essas pessoas que precisam ocupar prédios ou terrenos abandonados nas cidades?

Pelos critérios da Fundação João Pinheiro [1], são: 1. família ou pessoa que mora em situação precária, por exemplo, imóvel sem saneamento básico; 2. coabitação, muitas famílias/pessoas habitando o mesmo cômodo/imóvel; 3. ou ônus excessivo com aluguel, quem precisa usar mais de 30% da renda mensal para pagar a moradia. Ou seja, os sem-teto são pessoas que, sem que você saiba, muitas vezes estão no seu círculo social. Ou pode até ser que você se encaixe nos critérios, mas não sabia. A maioria é de trabalhadores de baixa renda, com empregos precarizados, como porteiros, copeiros, diaristas, babás, recebendo salário-mínimo ou menos. Assim, esses trabalhadores não conseguem pagar os valores abusivos de aluguel das regiões centrais da cidade, que detém as maiores demandas de empregos. Jogados às margens do perímetro urbano, muitas vezes são obrigados a escolher entre pagar tarifa de transporte ou alimentação.  

Além disso, dentro das ocupações de movimentos organizados, há uma cooperação mútua para uma boa convivência entre moradores. Teses, dissertações, documentários e estudos (disponíveis ao público) sobre as moradias ocupadas mostram uma grande articulação dos moradores. Podendo ir desde o momento da entrada nos edifícios abandonados, na limpeza e retirada de lixo até no convívio e na rotina comunitária. Os moradores da Ocupação Cambridge retiraram mais de 15 toneladas de dejetos e entulhos [2]-, realizaram pequenas reformas e reparos internos, por exemplo. Também há cooperação no cuidado com as crianças, alimentação e educação. A ocupação Nove de Julho é conhecida por promover cursinhos populares, eventos culturais, almoços comunitários e ceder espaços dentro da moradia para campanhas de vacinação. Crenças de que dentro das moradias há “bagunça” e “muita droga” são mais uma construção senso-comum, relacionando os movimentos sociais ao crime organizado, a fim de deslegitimar a luta por direitos. 

A ocupação de prédios ociosos tem legitimidade jurídica

Sobre a questão da “invasão” de apartamentos ou terrenos particulares, nenhum imóvel é ocupado do dia para a noite, há inúmeras condições legais para que um imóvel ou terreno seja ocupado. Pela Constituição Federal de 1988, no inciso XXIII do artigo 5, todo proprietário deve exercer a função social dos seus imóveis rurais ou urbanos, que devem ser utilizados em prol do interesse da sociedade. Por exemplo, em áreas delimitadas para serem residenciais, não pode ter uma construção de aeroporto perto do perímetro, pois isso impactaria negativamente no cotidiano dos moradores. Ou seja, terrenos vazios em áreas de interesse social não estão em situação legal.

De início, notificam-se os proprietários sobre a irregularidade e, se mesmo assim o imóvel continuar vago, há aumento progressivo de IPTU e outras multas e penalidades aos proprietários. Mas o que os donos desses edifícios, que vão desde hotéis a fábricas de tecidos falidos, ganham deixando esses edifícios abandonados? Eles preferem deixá-los assim durante anos, às vezes décadas, por alguns motivos: esperar por bem feitorias em torno do imóvel e assim valorizar seu bem. Também, manter a região com poucos imóveis comerciáveis, dando a “sensação” de que naquela região faltam imóveis, o que também acarreta a valorização dessas propriedades. Esses artifícios fazem parte de um sistema de especulação imobiliária. 

Se observarmos o histórico de ocupações organizados pelo FLM (Frente de Luta por Moradia), no centro do município de São Paulo, a grande parte dos imóveis hoje ocupados estava com dívidas de IPTU tão altas que os valores chegavam perto do seu valor de venda. É o caso da Ocupação Mauá e da Ocupação Prestes Maia, na região da Luz [3]. Outro ponto interessante é que, na maioria dos casos, os proprietários não reivindicam a posse dos imóveis, mostrando total desinteresse em regularizar a situação dos edifícios. Assim sendo, as ocupações habitacionais, mesmo sendo uma reivindicação legítima do direito à moradia e do direito à cidade, se chocam com as articulações dos gigantes do mercado imobiliário, que têm causado grande “comoção” da mídia e dos defensores da propriedade privada.

A parcialidade jurídica entre as ocupações no centro e os lotes irregulares nas periferias da cidade

Após esclarecer sobre as ocupações de moradia no centro da cidade, proponho uma reflexão a respeito da preocupação da sociedade com a propriedade particular [alheia]. Na maior parte das discussões sendo-comum sobre as ocupações, sempre acabam por defender a autonomia do proprietário do imóvel e de que forma ele a utiliza. Mas pouco se discute quando se trata de um terreno de preservação ambiental ocupado por condomínios de alto padrão, ou mesmo sobre as ocupações periféricas da cidade de São Paulo.

Segundo a Secretaria de Habitação de São Paulo (SEHAB), em fevereiro de 2023, existiam 22 imóveis públicos, 122 imóveis particulares e 23 imóveis de empresa pública ocupados na circunscrição das Subprefeituras Lapa, Sé, Pinheiros e Mooca [4]. Se compararmos esse total de 167 imóveis ocupados no centro expandido de São Paulo com os 420 mil domicílios em lotes irregulares na periferia da cidade [5], conseguimos ver a discrepância. Essa expansão ultraperiférica da cidade, principalmente a partir dos loteamentos irregulares, implica prejuízos para os moradores. Como na falta de saneamento básico, que acarreta doenças à população, poluição de mananciais e rios, além do desmatamento e degradação ambiental. A alternativa de dar a função de moradia popular aos edifícios vazios do centro do município, mesmo que sendo uma forma paliativa para o real problema da habitação no país, é também uma alternativa de proteção socioambiental.  

Então, por que a revitalização desses edifícios ociosos não se torna uma alternativa para o problema de habitação?

Uma hipótese para a utilização do discurso em defesa da autonomia do proprietário do imóvel e da defesa da propriedade privada, se sobrepondo ao interesse coletivo, é a perpetuação da lógica de produção urbana excludente. Ideologicamente segregacionista, essa lógica distancia a população de baixa renda dos grandes centros, da circulação e mercado. Assim, deixando-as inacessíveis aos direitos básicos, estes que na lógica capitalista se tornaram mercadoria, como a habitação, saúde, educação. Outra hipótese atrás desse discurso é que a alternativa das ocupações de moradia não agrada às empreiteiras de construção civil. As mesmas que constroem as unidades do Minha Casa Minha Vida nas periferias da cidade, e que também são as grandes financiadoras das campanhas eleitorais [6]. 

A partir de 2023, com a mudança no Plano Diretor da cidade de São Paulo, afrouxaram-se algumas diretrizes do projeto original, como o adensamento demográfico. Assim, as regiões centrais tendem a sofrer com o impacto desse aumento populacional, à medida que prédios mais altos e mais populosos vão sendo construídos. Alguns bairros como Perdizes e Pinheiros já sofrem com o aumento do trânsito por conta das obras em ruas estreitas e com muito fluxo normalmente. Quem dirá quando os moradores dos enormes prédios começarem a residir. Não se sabe ao certo os impactos gerados pelos super adensamentos, mas urbanistas já dão como certo que o fluxo da cidade ficará comprometido. 

De toda forma, o problema de habitação na cidade de São Paulo e no Brasil, na realidade, é um problema de mercado. Existem moradias dignas suficientes para o número da população. O que acontece é que parte dela não tem acesso ao produto, que encarece cada vez mais. Assim, o problema habitacional é intencional, e como Gabriel Bolaffi [7] argumentava, é um “falso problema”, que afeta grande parte da população de baixa renda.

Fontes:

[1] https://fjp.mg.gov.br/deficit-habitacional-no-brasil/ 

[2]https://www.brasildefato.com.br/2016/10/17/ocupacao-cambridge-une-luta-e-arte-pelo-direito-a-cidade#:~:text=Acabou%20ocupado%20na%20noite%20de,ca%C3%A7ambas%20de%20quase%2060%20caminh%C3%B5es.

[3]https://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/conflito/sp-a-luta-de-centenas-de-familias-da-ocupacao-maua-por-moradia/

[4]https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47131/tde-11122023-161447/publico/Dissertacao_corrigida.pdf 

[5] https://www.ipea.gov.br/ppp/index.php/PPP/article/view/170/183

[6] https://brasil.elpais.com/brasil/2014/11/20/politica/1416517943_194596.html

[7] BOLAFFI, Gabriel. Habitação e Urbanismo: O Problema e o Falso Problema. IN: MARICATO, Ermínia (Org). A produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil Industrial. 2a edição. São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1982.

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