AS MOEDAS DE JUSSARA – CONTO IV

AS MOEDAS DE JUSSARA – CONTO IV

Acordei às cinco da manhã, como se a madrugada me cuspisse para fora da cama. O corpo pesado, a boca amarga, e a constatação imediata: três moedas de dez centavos no bolso. Trinta centavos. Um número ridículo diante da minha necessidade absoluta. Não comprava um cigarro, não comprava nada. Era o suficiente apenas para me lembrar da minha miséria.

Nos últimos dias, a alimentação tinha sido uma piada de mau gosto: duas batatas divididas com um morador da pousada, mastigadas com a lentidão dos desesperados, como se cada pedaço pudesse iludir o estômago por mais tempo. No espelho do banheiro comunitário, eu evitava meu próprio reflexo. A mesma roupa, o mesmo cheiro de coisa esquecida num canto úmido. Meu estado físico e espiritual estava à altura um do outro: desleixados, irreconhecíveis.

Mas levantei. A fome de nicotina era mais forte do que qualquer resignação. Caminhei para a padaria, já formulando a desculpa que usaria para conseguir um cigarro fiado. Algo convincente, algo que despertasse um pingo de compaixão no atendente. No caminho, a cidade despertava indiferente. As ruas ainda vazias, um ar fresco de promessa vazia.

FOI QUANDO VI JUSSARA

Jussara dos Livros, como a chamavam. A mulher que perambulava pelas ruas com um monte de livros sujos e rasgados, lecionando para alunos invisíveis. Esquizofrênica, diziam. Iluminada, pensava eu. Seu cabelo desgrenhado dançava com o vento, e seus olhos eram uma coisa perdida entre este mundo e outro.

— Tem um cigarro? — perguntou, com aquela voz que não pedia, apenas existia.

Ri por dentro. Como se eu tivesse. Mas respondi:

— Tenho trinta centavos, se quiser completar, dá pra dois.

Jussara enfiou a mão no bolso da bermuda encardida. Sua mão magra pescou um punhado de moedas. Contou rapidamente e me entregou dez delas. Dez moedas de um real.

— Compra pra nós — disse simplesmente.

Eu fiquei parado. Segurando aquelas moedas como se fosse um milagre, mas um milagre absurdo, cruel. A mendiga, a louca, a esquecida me dava dinheiro. Não pediu nada em troca, não hesitou, não fez qualquer discurso. Apenas me deu o que tinha.

Meus olhos encheram de lágrimas enquanto caminhava para a padaria. O que eu faria agora com a desculpa ensaiada? Não precisava mais. O cigarro estava garantido. Mas nada disso importava. Importava a coisa imensa e sem nome que Jussara tinha acabado de fazer.

Comprei os cigarros, entreguei um a ela junto com o troco. Jussara pegou, guardou as moedas sem contar, sem olhar para mim. Apenas seguiu em frente, como se nada tivesse acontecido.

Eu, parado ali, um cigarro entre os dedos e um nó na garganta. O extraordinário da vida vinha do improvável, do invisível. Dos que não pediam, mas davam. De um Deus que se revelava nos gestos mais inesperados.

E naquele dia, Jussara me deu muito mais do que cigarros, do  que moedas ….

Eu jamais vou entender a força indutiva que fez aquela mulher tomar aquela atitude e sem nenhuma pretensão de nada, de doar o pouco que tem a alguém que jamais a proporcionou nada nem a simples percepção de sua existência e nesta inexistência que na verdade representava a gigantesca magnitude da pureza obscurecida pelo egocentrismo de nossas vidas que precisam despertar para a sutileza dos valores verdadeiros.

————–

Por Virgilio Galvão

De Brasília

The post AS MOEDAS DE JUSSARA – CONTO IV appeared first on Folha do Estado SC.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.