TRUMP REEDITA DOUTRINAS DE POLÍTICA EXTERNA PARA IMPOR RELAÇÃO COM AMÉRICA LATINA

Sem titubear Trump assegura a jornalistas que os EUA ‘não precisam da América Latina’, mas a região sim de seu país

Presidente dos EUA, Donald Trump, durante assinatura de decretos no Salão Oval — Foto: AFP.

Em suas primeiras falas sobre como vê a América Latina, o presidente dos EUA, Donald Trump, fiel a seu estilo direto e muitas vezes rude, reforçou temores sobre um vínculo que deverá ser marcado por tensões, ameaças e o revival de princípios da política externa americana de outras épocas, entre eles a Doutrina Monroe – alguns analistas já falam na doutrina Donroe -, a Diplomacia das Canhoneiras e a Doutrina do Destino Manifesto (conceito do século XIX, usado para justificar a necessidade de expansão territorial dos EUA).

Sem titubear, Trump assegurou a jornalistas que os EUA “não precisam da América Latina”, mas a região sim de seu país. Dados do governo americano e da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) confirmam que a ajuda dos EUA a países latino-americanos ainda é expressiva, e os capitais americanos lideram o ranking de Investimento Estrangeiro Direto na região. No entanto, analistas locais ouvidos pelo GLOBO fizeram ressalvas à declaração do presidente americano, lembrando que Trump não pode virar as costas para a América Latina por motivos como o comércio e, acima de tudo, a disputa com a China por influência global.

TOUR REGIONAL

Para iniciar uma relação que já começou difícil, o novo secretário de Estado americano, Marco Rubio, visitará a partir desta semana cinco países latino-americanos: Guatemala, El Salvador, Costa Rica, República Dominicana e Panamá. Neste, as tensões estão elevadas pela intenção de Trump de recuperar o Canal do Panamá, claramente recorrendo à Diplomacia das Canhoneiras, que implica a utilização de ameaças e até mesmo força militar para alcançar objetivos. O século XX foi testemunha de sua aplicação, com intervenções militares dos EUA em países como Nicarágua (1912-1925), Haiti (1915-1934) e República Dominicana (1916-1924) sob a justificativa de necessidade de proteger interesses econômicos e políticos americanos.

Em seu discurso do posse, Trump disse que o Canal do Panamá “foi tolamente dado depois que os EUA gastaram mais dinheiro do que nunca nesse projeto (…). Fomos tratados muito mal em retribuição a esse presente tolo, que nunca deveria ter sido dado, e a promessa do Panamá para nós foi rompida (…) Os navios americanos são sobretaxados, de nenhuma forma são tratados de maneira justa. (..) E, acima de tudo, a China está operando o Canal do Panamá. E não o demos à China. Demos ao Panamá e vamos tomá-lo de volta”.

Para Carlos Mussi, ex-diretor do escritório da Cepal no Brasil e diretor da Zeteo Saber consultoria, as declarações são “um claro exemplo da Diplomacia das Canhoneiras e da Doutrina Monroe” – esta pela menção à China. Formalmente abandonada em 2013, durante o governo do democrata Barack Obama, a doutrina sob o lema “a América para os americanos” foi criada pelo presidente James Monroe em 1823 para ditar a hegemonia dos EUA na região, em um momento em que havia preocupação de eventuais tentativas de recolonização pelos europeus. Desde sua criação, foi muitas vezes usada para justificar intervenções militares americanas em países latino-americanos.

– Trump usa valores e imagens que são familiares e fortes entre os americanos – afirma Mussi, que destaca a referência à Doutrina do Destino Manifesto quando, em seu discurso, Trump afirmou que os “EUA mais uma vez se considerarão uma nação em ascensão, uma que aumenta nossa riqueza, expande nosso território, constrói nossas cidades, eleva nossas expectativas e empunha nossa bandeira para novos e belos horizontes”.

Para Mussi, “a China é um dos pontos fortes da política externa americana, e nós entramos por efeito colateral. Trump não pode virar as costas para a América Latina”.

DESVANTAGEM GEOPOLÍTICA

Quando Trump diz que os EUA não precisam da América Latina omite elementos importantes, afirma o mexicano Antonio Ortiz-Mena, professor-adjunto da Universidade de Georgetown, CEO da AOM Advisors e presidente do Comitê T-Mec (acordo entre EUA, México e Canadá) do Conselho Mexicano de Comércio Exterior.

– Ações unilaterais dos EUA podem colocar em risco o acesso privilegiado do país a mercados da região, como o do México. Hoje, o México é o principal sócio comercial dos EUA, e a China está em terceiro lugar – explica Ortiz-Mena.

A América Latina, acrescentou o especialista, “é rica em minerais críticos como o lítio, essenciais para a segurança nacional dos EUA”.

– Se não houver um clima bom para investimentos com os EUA, muitos países latino-americanos poderiam optar pela China. Seria uma perda de oportunidade para os EUA, e uma desvantagem na concorrência geopolítica com os chineses. É algo que deve ser calculado – frisa Ortiz-Mena.

Em matéria comercial, nos últimos anos os EUA perderam espaço para a China na América Latina. Em 2023, o país asiático, que já era o principal parceiro comercial de Brasil, Chile e Peru – entre outros países latino-americanos, sendo a Colômbia uma das poucas exceções -, atingiu um recorde de intercâmbio de US$ 480 bilhões com toda a região. A balança comercial ficou relativamente equilibrada, com um ligeiro superávit favorável à América Latina de US$ 2 bilhões. No mesmo ano, o comércio entre os EUA e a região chegou a US$ 180 bilhões, com um superávit favorável aos EUA de US$ 4,2 bilhões.

De acordo com a Cepal, entre os anos 2000 e 2022, “o comércio de bens entre a região e a China aumentou 35 vezes, enquanto o comércio total da região com o mundo aumentou apenas quatro vezes. O comércio bilateral, que em 2000 mal ultrapassava US$ 14 bilhões, aproximou-se de US$ 500 bilhões em 2022.

– Em termos comerciais, os países que mais dependem dos EUA são os do Caribe. Nos demais casos, a China pode ocupar o espaço – alerta a economista Lia Valls, pesquisadora do FGV Ibre e professora da Uerj, alertando até para cenários extremos: Mas é preciso estar atentos, porque a América Latina não tem capacidade de retaliar os EUA, e poderia sofrer com sanções, sobretudo financeiras.

O OUTRO LADO DA BALANÇA

O sistema financeiro americano é central para os países latino-americanos e ficar fora dele é dramático, como mostra o caso de Cuba. Por outro lado, diz Valls, os EUA sim precisam da América Latina por temas de “segurança nacional, investimentos e presença de empresas americanas em países da região”.

Segundo a Cepal, em 2023 os EUA investiram US$ 184,3 bilhões na América Latina, o que representa uma queda de 9,9% em relação ao ano anterior, mas que mantém o país na liderança. Os países que mais receberam investimentos americanos foram Brasil, México, Argentina, Chile, Costa Rica e Honduras.

Muitos países latino-americanos também recebiam, até agora, ajuda por meio de organismos estatais americanos, entre eles a Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional (Usaid). Em 2023, ano em que os recursos destinados à região alcançaram US$ 2,6 bilhões, a Colômbia recebeu 28% desse total. Também foram beneficiados o Haiti, México, Guatemala, El Salvador, Honduras e Peru.

A viagem de Rubio a países latino-americanos será importante para saber até que ponto o governo Trump está, de fato, disposto a pressionar a América Latina e arriscar perder ainda mais influência para a China.

Por Janaína Figueiredo – Buenos Aires

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