Jornada de 25 anos de um revólver alerta para risco de flexibilização

(FOLHAPRESS) – Um revólver .38 da marca Taurus, fabricado em 1993, começou sua trajetória como uma arma adquirida legalmente para defesa pessoal, em Birigui, no interior de São Paulo, mas depois seguiu o caminho de tantas outras ao passar para o mercado ilegal. Foi disparada pela última vez 25 anos depois, em um crime cometido por ciúme.

A arma de numeração MF 798035 foi adquirida legalmente no mesmo ano de sua fabricação e usada por seu proprietário por 19 anos, até ser roubada em 2012. Desde então, passou outros seis anos no submundo do crime, até o momento em que foi descoberta por policiais.

Na ocasião em que foi roubada, quatro bandidos encapuzados e armados invadiram uma empresa. De acordo com o boletim de ocorrência, eles renderam três vigilantes que estavam no pátio da indústria, trancaram as vítimas em um cômodo e fugiram com revólveres -dos vigilantes e o do proprietário-, rádios de comunicação, 36 munições e um veículo.

A partir daí, a arma circulou por seis anos até ser adquirida por Silvio Gonçalves de Oliveira Junior, em Araçatuba, cidade a 20 km de Birigui. O ano era 2018. Foi com ela que cometeu o homicídio do comerciante Ademir Dias de Aragão, baleado com dois disparos na cabeça.

“Era uma boa pessoa, querida na sociedade, e deixou três filhos”, disse o irmão e sócio de Ademir, Adeildo Dias de Aragão, em depoimento à polícia. No momento do crime, ele não estava com seu irmão, pois havia saído para comprar pão para os funcionários da sua fábrica de doces.

Segundo consta no processo, a arma foi adquirida em troca de um carro, uma pick-up. A polícia constatou que se tratava de uma arma roubada ao cruzar seus dados com a base de dados da Polícia Federal.

Dados do Ministério da Justiça e Segurança Pública mostram que, em 2024, as polícias estaduais apreenderam 101.880 armas no Brasil após condutas ilegais, o que representa uma redução de 2,92% em relação ao ano anterior.

As armas mais apreendidas no ano passado foram os revólveres, com 35.041 unidades, seguidos pelas pistolas, com 29.521, e pelas espingardas, com 18.474. Nove estados registraram aumento nas apreensões, com destaque para Tocantins, São Paulo, Rondônia e Mato Grosso.

Especialistas apontam que muitas das armas apreendidas tinham origem legal, mas acabaram indo parar no mercado ilegal devido a fatores como roubo e furto. Um documento do TCU (Tribunal de Contas da União) revela que, entre 2015 e 2020, das 47.748 armas recolhidas em São Paulo, 3.873 (ou 8%) eram de CACs (Caçadores, Atiradores e Colecionadores).

Pelo menos 1.312 dessas armas foram adquiridas e registradas no Exército a partir de 2019, início do governo de Jair Bolsonaro (PL), gestão marcada pela significativa flexibilização das normas, que ampliaram o acesso a armas e munições.

No governo Lula (PT) já foram publicados três decretos de armas que deram um freio à flexibilização adotada no governo anterior.

“O caso reforça um grave alerta: armas adquiridas para defesa frequentemente acabam no mercado criminal e permanecem em circulação por décadas. A flexibilização na compra e o enfraquecimento dos controles nos últimos anos levaram a dobrar o número de armas em mãos civis –e, consequentemente, em mais armas desviadas”, avalia Bruno Langeani, consultor sênior do Instituto Sou da Paz.

Ademir morava nos fundos da fábrica de doces, onde foi encontrado morto. Silvio foi condenado a 11 anos de prisão por homicídio, receptação –já que a arma usada no crime era produto de roubo– e furto, por ter levado bens como celular, carteira, cartões de crédito e R$ 5.350 da vítima.

Após cometer o crime, Silvio foi para casa, escondeu o revólver e fugiu. A arma foi encontrada posteriormente por policiais militares.

Segundo o processo judicial, o crime foi motivado por uma relação tóxica entre Silvio e sua companheira. Ele acreditava que a mulher tinha um caso com Ademir, o que foi negado em depoimentos de testemunhas. Na época do crime, no entanto, o casal já não estava mais junto.

O advogado Álvaro dos Santos Fernandes, que defende Silvio, afirma que o cliente nega a autoria do crime e diz que ele não tinha nenhum conhecimento sobre a arma de fogo. Atualmente, ele está preso.

Falta de integração é obstáculo para rastreamento

A arma com a numeração MF 798035 foi rastreada devido ao crime cometido. No entanto, segundo Langeani, o Brasil ainda falha gravemente nesse aspecto. E a supressão de marcas é um obstáculo, mas não o principal.

Segundo o especialista, poucos estados possuem delegacias especializadas no combate ao tráfico de armas e são poucos também os profissionais que realizam o rastreamento dessas armas. Mesmo os que tentam enfrentar o problema se deparam com falhas nos sistemas.

“Até hoje, o banco de armas do Exército -que inclui os armamentos de CACs- é invisível para muitos policiais. Além disso, os sistemas precisam integrar não apenas as armas registradas, mas também as roubadas, desviadas e apreendidas, tornando as informações mais úteis para investigações”, afirmou.

“Isso beneficiaria inclusive os proprietários de boa-fé, permitindo que armas roubadas, quando apreendidas, pudessem ser localizadas e devolvidas aos seus legítimos donos”, acrescenta Langeani.

Atualmente, o Sigma (Sistema de Gerenciamento Militar de Armas), banco de dados do Exército, não está integrado às bases de dados da Polícia Federal e das polícias estaduais. Com isso, um policial em operação não consegue acessar essas informações para verificar a situação das armas registradas no sistema, incluindo as dos CACs ou particulares de militares.

O Exército foi procurado para comentar, mas ainda não se manifestou até a publicação.

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