UMA HISTÓRIA DE REFLEXÃO SOBRE JOÃO DE DEUS

CONTO V – Uma história impressionante

Fazia um calor sufocante naquela segunda-feira no hospital oncológico. Eu seguia minha rotina quando uma enfermeira entrou, apressada, o olhar alarmado, as palavras presas na garganta.

— Doutor, chegou um caso muito grave.

Levantei-me e segurei seus ombros.

— Respira. Vamos dar um jeito.

Ela tentou se acalmar, mas uma lágrima escorreu por seu rosto. Quando conseguiu falar, sua voz saiu fraca, trêmula.

— Esse paciente veio transferido de outro hospital. Ninguém conseguia… ou queria tratá-lo.

Não respondi. Peguei o prontuário e fui até a recepção. O ambiente estava quase vazio. Apenas duas cadeiras ocupadas: um homem magro, vestindo roupas gastas, a cabeça e o maxilar enfaixados, e um menino ajoelhado no chão, entretido com um soldadinho de brinquedo. O ar estava pesado, um odor forte e desagradável impregnava o local. Talvez fosse esse o motivo da recepção estar deserta.

Chamei pelo nome no prontuário:

— Senhor João de Deus.

O homem se levantou devagar, segurando a mão do menino e apoiando o queixo com a outra. Ao conduzi-los até a sala, notei os olhares discretos — mas carregados de julgamento — dos poucos funcionários ali presentes.

Dentro do consultório, fiz algumas perguntas básicas: onde morava, onde fazia tratamento. Ele apenas balançava a cabeça, sem conseguir responder. O olhar fixo no chão. Vergonha. Seu filho, ao contrário, me encarava diretamente. E então, apertou minha mão. Forte.

Com cuidado, comecei a remover a bandagem de seu rosto. Pequenos pontos brancos caíram sobre o lençol. Grãos de arroz? Não. Larvas de mosca, que se mexiam lentamente. O curativo estava úmido, impregnado de restos de comida e secreção. Sua mandíbula inferior estava devastada. Um buraco grotesco ligava sua boca ao pescoço. Vermes se moviam pelas bordas necrosadas. Ele usava a atadura para evitar que os alimentos escapassem pela cavidade. Seus olhos estavam vermelhos, úmidos. Vergonha. Cansaço.

Fiz a limpeza da ferida, posicionando meu corpo de forma a impedir que o menino visse. Apliquei um curativo limpo e pedi que retornasse ainda naquela semana.

João pegou um caderno. Escreveu devagar:

— Por amor de Deus, me ajude.

Olhei para a porta. O menino espiava, agachado. João de Deus puxou meu braço e escreveu que aquele era seu filho mais velho. Nove anos.

Saí do consultório, abaixei-me ao lado do garoto.

— Você precisa ser forte, como seu soldado.

Ele apertou os olhos, segurando as lágrimas. Depois, segurou minha mão com força. E, sem dizer nada, me abraçou. Quando se afastou, tentou sorrir e secou o rosto com a barra da blusa.

João de Deus voltou ao hospital todas as semanas. Mas a cada visita, estava mais fraco. Perguntava se iria melhorar. Dizia que todas as manhãs corria até o espelho, torcendo para que tudo não passasse de um pesadelo. Mas não era.

Cerca de cinco semanas depois, ele faleceu.

Por anos me perguntei onde estava Deus naquele momento. Seu filho crescera vendo o pai definhar, apodrecer vivo. Como seguiria em frente? Ele conseguiria suportar? Ou se perderia?

Quinze anos se passaram. Um dia, caminhando pelo centro da cidade, ouvi alguém me chamar. Virei-me.

Um jovem de aparência elegante, barba bem feita, roupas sociais. Um sorriso aberto. Ele estendeu a mão.

— Doutor, sou o filho de João de Deus.

Eu o puxei para um abraço.

— Tornei-me advogado. E também mestre em artes marciais.

Como o soldadinho de brinquedo de sua infância.

Nós nos despedimos. E, naquele instante, compreendi. Deus esteve ali o tempo todo. Na superação. Na transformação.

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Por Virgílio Galvão

DE Brasília

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