ARTIGO: ESPECIALISTA DIZ QUE BOLSONARO TENTOU UM GOLPE À MODA ANTIGA E QUE POR ISSO FALHOU

Serranos diz que penas já aplicadas estão dentro das normas corretas

Pedro Serrano, doutor em Direito do Estado e professor da PUC-SP. Foto: Arquivo pessoal.

O fracasso de um golpe de Estado em 2022/23 também pode ser atribuído ao formato pensado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e os outros 33 denunciados pela PGR (Procuradoria-Geral da República) nesta semana, avalia o professor de direito constitucional da PUC-SP Pedro Serrano.

Em entrevista ao UOL, ele explica que a tomada de poder por meio de um decreto é característica das ditaduras do século 20 – nos Estados de exceção atuais, a democracia é erodida por dentro, aos poucos, por meio de medidas que suspendem “alguns direitos de todos e muitos direitos de alguns”.

O pesquisador, autor do livro “Autoritarismo e golpes na América Latina”, também defendeu uma “pena média” aos envolvidos, e que o julgamento deles deve mostrar que a democracia brasileira “não aceita essa violência, como foi em Nuremberg” – em referência ao processo histórico contra oficiais nazistas na década de 1940.

TENTATIVA DE GOLPE À MODA ANTIGA

A PGR denunciou nesta semana Jair Bolsonaro e mais 33 pessoas. O ex-presidente é acusado de cinco crimes: organização criminosa armada, abolição violenta do Estado democrático de direito, golpe de Estado, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado. Bolsonaro liderava o núcleo “crucial” da trama golpista, segundo a denúncia, e editou rascunho de decreto para se manter no poder após perder as eleições de 2022. A defesa de Bolsonaro classificou a denúncia como “precária” e “incoerente”.

É uma das razões de Bolsonaro ter falhado: ele tentou criar um modelo autoritário que já não é mais o preponderante no mundo, através de um decreto de exceção, de um decreto de estado de sítio que ele estava fazendo a minuta.

Depois da guerra, o autoritarismo tem que combater a ideia que ele é ligado ao nazismo e fascismo, porque uma das características do autoritarismo é nunca se declarar autoritário. Daí é o que a gente vê na Hungria, na Turquia, na Venezuela, na minha opinião, nos Estados Unidos está ocorrendo isso agora. São sistemas que vão produzindo medidas de exceção esvaziando de sentido os direitos e a Constituição aos poucos, de maneira dispersa no sistema.

Já no século 20, uma característica das ditaduras é a declaração jurídica. Todas foram instauradas por um decreto de sítio, um decreto de exceção, um ato institucional. Há uma espécie de decreto instaurando a ditadura e suspendendo a parte ou integralidade da Constituição e, na prática, suspendendo alguns direitos de todos e muitos direitos de alguns.

Estátua A Justiça, de Alfredo Ceschiatti, que fica em frente ao STF, foi vandalizada no 8 de janeiro de 2023. Foto: Gabriela Biló (arquivo 9/1).

Aqui no Brasil, o Bolsonaro tentou fazer um golpe “old-fashioned” (à moda antiga, em inglês): ele queria instaurar um regime contra uma eleição que tinha acabado de acontecer, e através de um decreto suspender a Constituição, suspender os direitos, prender gente. Tudo isso está lá no inquérito.

ALEXANDRE DE MORAES E A VOTAÇÃO NA PRIMEIRA TURMA

Depois de receber a denúncia, o STF notifica os acusados, que terão 15 dias para apresentarem as defesas. Depois, o relator do caso, Alexandre de Moraes analisa a acusação e a libera para julgamento: a previsão é que ela seja analisada pela Primeira Turma do Supremo, composta por cinco ministros: Moraes, Cármen Lúcia, Cristiano Zanin, Flávio Dino e Luiz Fux. Desde 2023, as ações penais são julgadas nas turmas para dar mais agilidade aos processos. Os advogados de Bolsonaro defendem que a decisão deveria ser do plenário do STF: ou seja, dos 11 ministros. A decisão fica a cargo de Moraes.

Moraes, como relator, poderia levar para o plenário. Tem quem defenda que, pela importância do caso, ele mereceria um julgamento no plenário, pela legitimidade. E as questões de justiça não são só questões de legalidade, são de legitimidade também.

Não está juridicamente equivocado, não é ilegítimo nem ilegal a turma julgar, mas é inevitável que haja uma reação política. Para você poder enfrentar essa reação posterior, caso a decisão seja de condenação, é importante que haja a menor quantidade de dúvida possível. Porque os defensores de Bolsonaro, se ele for condenado, vão defender a anulação do processo, isso é natural.

Agora contestar que Alexandre de Moraes seja o juiz do caso não faz sentido. Ali havia uma organização criminosa em atuação, e o ministro Alexandre foi ameaçado quando ele já comandava essa investigação. Quando você investiga uma organização criminosa e ela atenta contra você, você não pode ser impedido, porque senão você deixa o investigado, o réu, escolher quem vai julgá-lo.

Esse raciocínio simplista que a direita usa muito, que “ele foi atacado, logo ele não pode mais ser o juiz”. Então ninguém mais julga organização criminosa no Brasil. Ele não foi atacado por uma condição privada, mas pelo cargo que ocupa.

SE CONDENADOS, ENVOLVIDOS MERECEM “PENA MÉDIA”

Segundo o relatório mais recente divulgado pelo gabinete do ministro Alexandre de Moraes, até janeiro deste ano 371 pessoas foram condenadas pelos atos golpistas. Dessas, 155 foram presas. Outras 527 assinaram acordos de não-persecução penal: termos em que reconhecem a participação nos delitos para evitarem um processo judicial.

É a primeira vez que você tem militares, ministros, presidente processados por tentativa de golpe. Teve situações na história de gente ser punida, mas pelo presidente, não por um processo judicial com base numa lei, de uma forma democrática. E a tentativa, se formos pensar em um golpe não realizado, não me lembro de nenhum mais extenso e intenso que o brasileiro.

A denúncia mostra um golpe em vários atos, uma peça em que o 8 de Janeiro foi o ato final. Houve ações em frente aos quartéis, teve ataque à Polícia Federal, bloqueio de estradas, tentativa de uma unidade do Exército composta por oficiais superiores de matar o presidente eleito, tentativa de terrorismo em aeroporto e, por fim, o 8 de Janeiro. As provas demonstram cabal e abundantemente que a intenção era convocar os militares a um golpe de Estado. Se teve uma ação consciente, articulada, isso não pode ser punido com a pena mínima.

Para Serrano, não é verdade que os executores foram punidos com penas graves, como alegam os bolsonaristas e a oposição ao governo Lula. Para ele, a maioria dos executores foi beneficiada por acordos de não-persecução penal, ou pelo menos tiveram essa oportunidade.

Se aceitam o acordo, devem fazer um cursinho e pagar uma multa, como uma infração de trânsito, que é a infração mais simples que você tem no nosso sistema. Quem está sendo processado é quem ou não topou o acordo, e resolveu encarar, que são pouquíssimas pessoas, ou quem teve um papel mais de comando na hora da execução. E esses não podem ser punidos com a pena mínima. Tem que ser punidos com a pena média, como foi o que o Supremo fez.

Os que comandaram, na minha opinião, não devem ter a pena máxima, mas devem ter uma pena entre a média e a máxima. Não dá pra punir com pena mínima, porque senão como é que você vai punir no dia que você tiver o início de uma articulação? Você não vai poder punir? Então você vai deixar chegar até golpe? A ideia é você capturar as articulações golpistas logo no início delas. Porque você não tem como punir o golpe feito. O golpe feito é a instauração, é a fundação que nós chamamos de uma nova ordem jurídica que, é óbvio, não vai punir a si própria.

Mas no caso do processo contra Bolsonaro, não caberia pena máxima, diz Serrano, uma vez que não se chegou a vias de fato, com tanques na rua, soldados, ou seja, não houve uma ação de repressão armada.

Eu acho que também não pode ser a máxima, que tem que ser preservada quando você tiver atitudes mais intensas: quando você tiver tanque na rua e não conseguir impedir, situações muito limítrofes. Ou a repetição, se o cara reincidir. Porque, não tenha dúvida, o Brasil, nesse ponto, ele é encantado. Não é impossível a gente imaginar as mesmas pessoas voltando a tentar um golpe daqui a um tempo.

A finalidade dessa reação não é punir: é deixar claro para as próximas gerações que a sociedade brasileira não aceita ataques violentos à Constituição, à democracia, aos direitos. Punir aí é a forma humana de não aceitar essa violência, como foi em Nuremberg.

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Por Ana Satie

Uol – São Paulo

 

 

 

 

 

 

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